Há as falsas loiras, as falsas magras e os falsos ingênuos. Mário Lúcio Vaz criou pra si um tipo muito peculiar, o falso bronco.
Carregava no sotaque mineiro (que mais tarde descobri que era opcional e não item obrigatório), fazia cara de quem ou não estava entendendo ou admirando muito o que você dizia. Por um tempo até pensei, nossa, um cara mandando na dramaturgia assim… bobo? Logo descobri que o bobo era eu. Mário se fazia de ingênuo e até mesmo despreparado por estratégia e determinação e acabou se revelando uma das pessoas mais inteligentes que conheci na TV.


Ambos sabiam fazer o trabalho, mas tinham estilos radicalmente opostos. Daniel, que continuava como diretor de novelas e também era ator, buscava as luzes do palco. Mário preferia a discrição dos bastidores. Daniel gostava de ostentar poder e conhecimento – e ele tinha os dois. Às vezes era brilhante. Às vezes apenas autoritário. Era difícil. Eu também nunca fui um amorzinho, então nem sempre nos entendíamos.
Com Mário era mais fácil. Uma vez expliquei pra um amigo: você entra na sala do Daniel com a ideia de fazer uma novela sobre Fadas e Elfos. Na saída você agradecia a ele por ELE ter tido a ideia de fazer uma novela sobre Fadas e Elfos. Com Mário Lúcio você entrava com essa ideia e na saída ele agradecia porque você teve a brilhante ideia de fazer uma novela sobre mineradores e ladrões de joias. O mineiro era tão hábil que demorava uma meia hora até você perceber que ele mudou tudo o que você queria fazer, mas te fez pensar que a ideia foi sua.
Ele não disputava com nossos egos. Pelo contrário, nos deixava falar, fazia cara de como-você-é-inteligente, tudo que nossos egos às vezes frágeis precisam, mas no fim quem determinava o mapa do percurso era ele. Era quase desprovido de ego. Quase, que ninguém é de ferro.

Foi com Mário que fiz também minha novela mais malsucedida – "Vira Lata" (1996). E o pior é que ele sabia que não ia dar certo. Achava que eu não tinha construído bem a protagonista e que não deveria ter aceito algumas escalações de elenco que me foram impostas. Estava certo. No final do primeiro capítulo, ao qual assisti com a equipe e meu amigo e colaborador Vinícius Vianna, todo mundo aplaudia, Vinícius olhou pra mim e perguntou o que foi, a novela foi ótima. Lembro que só respondi ótima o #$&*@, fodeu. Penei. Só consegui virar a novela lá pelo capítulo 60. Depois de tudo perguntei pro Mário porque ele deixou a novela sair se achava que havia tantos erros. Ele disse que eu precisava de um fracasso para crescer. O fracasso ensina mais que o sucesso. "E de lambuja você aprendeu a consertar uma novela no meio". Depois disso, virei o homem da caixa de ferramentas dele por uns 15 anos, chegando a assumir duas novelas de outros autores para consertos e funilaria em geral.

Marluce confiou em Mário e acabaram se dando muito bem. Sempre faço questão de dizer que a Marluce que entrou na Globo sabia pouco de TV. Mas ela aprendeu muito. Marluce era muito inteligente e ávida por conhecimento. Mário também gostava de ter alguém de temperamento forte para exercer o poder final enquanto ele permanecia discreto reorganizando o departamento. Foi época de grandes sucessos de autores próximos a ele, como "Terra Nostra" (1999-2000) de Benedito (Ruy Barbosa) e minha própria "Uga Uga" (2000-01).
Minha história mais maluca com Mário, porém, foi antes. Em 94 me chamou ao Rio pra ver minha pré-sinopse de novela (estranhei, era coisa para estrear em maio do ano que vem). Era um texto curto, um fiapo de duas histórias centrais que se cruzavam. Mais contei do que ele leu. Mário me mandou falar com Homero Icaza Sanchez dizendo que o Bruxo das pesquisas (e era mesmo) ia me falar sobre as telespectadoras que naquele momento eram o público-alvo. Conversa ótima, ele me deu dados para rechear minhas quatro mulheres principais. Passei pela sala do Mário na volta:
– Tchau, Mário, vou pra Sampa.
– E vê se escreve logo.
– A sinopse, né? Afinal isso aqui é só um esboço.
– Não, os capítulos. A novela estreia em 56 dias.
Quase caí duro. Falei impossível uma dezena de vezes, falei que era abuso, ou seja, fui o chato que sempre sou quando sou pego de surpresa. Mário esperou meu fôlego acabar e disse tranquilo.
– Estréia em 56 dias. E sei que estreia porque você é maluco e vai escrever e o Ricardo Waddington é maluco e vai dirigir. Vocês vão enlouquecer a Globo inteira, vão exigir todos os cenários e todos os elencos mas vão botar no ar.
A novela estreou na data prevista.
A novela se chamou "Quatro por Quatro" (1994-95) e, modestamente, foi um arraso. Mário só me contou uma mentira nisso tudo. Disse que como a encomenda era de supetão a novela ia ser mais curta. Em vez de 150 seriam uns 120 capítulos. Acabaram sendo 233. A segunda novela mais comprida da Globo (a cores), só atrás de "Barriga de Aluguel" (1990-91) de minha amiga Glória (Perez).
Para mim pessoalmente a Globo ficou mais triste em 2008 quando Mário se desentendeu com Otávio Florisbal e foi defenestrado. Eu já esperava algo assim, era evidente que os dois não se combinavam. Pessoalmente acho que a Globo perdeu muito tanto de graça como de ousadia.

O que de melhor ele deixou foi a valorização da figura do autor. Ele sempre disse que tudo numa novela pode dar errado que se dava um jeito. Menos a história. Até tinha como se consertar, mas a marca do remendo era mais evidente. Foi num dos seus períodos de poder que se normatizou que o nome do autor seria sempre o primeiro numa abertura de novela, com o crédito novela de. A TV brasileira às vezes tem momentos de cinema francês, em que o diretor é a figura mais importante, oscila entre seu amor e ódio pelos autores – que são os donos do futuro para toda a equipe, cast, público, já que inventamos a história enquanto ela é apresentada. Mário uma vez me repreendeu por eu não ter pedido pra regravarem coisas que vi que estavam erradas num trabalho meu. Eu falei que o povo do Projac já achava que eu me metia demais. Mário foi duro: " Quando não der Ibope, ninguém vai lembrar ah, como ele ficou bem no canto dele. Só vão dizer que a novela é uma merda. E nessas horas, a culpa é só do autor".... -Ele criou o showrunner antes do nome virar moda a partir da TV americana. Afinal, autores de novela não são poetas que contam uma "Ilíada", mas gente com planilhas com números de cenários que cabem no estúdio, que podem aumentar ou diminuir o custo de um produto ao sabor de sua imaginação e que devem modular sua história ao sabor das paixões e ódios do público. Um pouco dessa magia foi embora quando Mário foi aposentado. Ele fez falta nos últimos dez anos. Agora vai fazer falta pra sempre.P.S. Como escrevi com pressa e emocionado, cometi omissões importantes. Também foram lançados pelo Mário como autores de novela Miguel Falabella, Duca Rachid e Thelma Guedes, Alcides Nogueira e Emanuel Jacobina.*Carlos Lombardi é autor de novelas e séries. Trabalhou na Globo entre 1981 e 2010. ... - Veja mais em https://tvefamosos.uol.com.br/blog/mauriciostycer/2019/07/23/mario-lucio-vaz-criou-a-figura-do-showrunner-muito-antes-de-virar-moda/?cmpid=copiaecola
Texto Complementar:
MÁRIO LÚCIO VAZ
O executivo Mário Lúcio Vaz nasceu em Belo Horizonte em 1933. Ingressou na Globo em 1970. Foi diretor do humorísticos Chico City e Praça da Alegria e diretor da Central Globo de Produção. Deixou a emissora em 2008 e morreu em 2019.
TRAJETÓRIA
O início na televisão foi curioso. Mário Lúcio estava juntando dinheiro para se casar e um amigo do banco perguntou se ele não queria trabalhar como datilógrafo na TV Itacolomi, em Belo Horizonte. Para aumentar sua renda mensal, ele aceitou e passou a datilografar os scripts da emissora à noite. Interessado no funcionamento da emissora, aproveitava os horários de folga para conhecer a parte operacional, fazendo visitas frequentes aos diretores e operadores da estação. Graças a essas visitas, acabou sendo convidado para assumir o cargo de diretor de imagem do telejornal Aerovias Brasil. Aos poucos, passou a dirigir também os musicais e teleteatros da emissora até tornar-se diretor artístico da TV Itacolomi.
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Em 1964, foi trabalhar no canal 8 da TV Triângulo, em Uberlândia, com a função de organizar a programação local. Permaneceu no cargo por oito meses e voltou para a TV Itacolomi de Belo Horizonte. Pouco tempo depois, recebeu novo convite de trabalho, de Walter Clark e José Maria de Castro Neves, diretores da TV Rio, para trabalhar como diretor de imagem na emissora no Rio de Janeiro. Mário Lúcio Vaz permaneceu na TV Rio por muitos anos. Foi responsável pela direção de diversos programas, como Moacyr Franco Show, Show Sem Limite, de J. Silvestre, e Rio Jovem Guarda.
Ingressou na Globo no final do ano de 1970, convidado de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Sua primeira incumbência foi assumir a função de diretor de imagem do programa de variedades Alô Brasil, Aquele Abraço. Desempenhava também o cargo de produtor da atração. Com Arlete Salles, Lúcio Mauro, Renato Corte Real e José Fernandes, Alô Brasil, Aquele Abraço era realizado ao vivo e foi apresentado até 1972.
O programa, baseado em uma competição entre os estados do Brasil, contava com diversas atrações, como números musicais e circenses. Alô Brasil, Aquele Abraço estimulava a participação dos telespectadores, feita pelo telefone ou através de cartas enviadas à Globo. O público elegia as melhores atrações do programa, que eram premiadas.
Ainda na década de 1970, Mário Lúcio passou a assessorar o diretor Augusto César Vannucci nos programas da linha de shows. Dirigiu Show da Girafa, Moacyr TV, Globo de Ouro, entre outras atrações. Nessa época, assumiu também a direção de Chico City, programa estrelado por Chico Anysio, ambientado numa cidade fictícia, onde o humorista interpretava a maioria dos personagens. Mário Lúcio permaneceu à frente do programa até 1976, quando foi substituído por Carlos Manga. “Foram mais de 40 anos acompanhando o Chico Anysio, desde antes da Globo. Uma amizade maravilhosa, uma das coisas mais bonitas que eu tive”, lembrou ele em entrevista ao Memória Globo. Assumiu, em seguida, a direção do humorístico Praça da Alegria, criação de Manoel da Nóbrega, outro marco do humor na televisão brasileira.
Na década de 1980, Mário Lúcio Vaz foi convidado por Mauro Borja Lopes, o Borjalo, então diretor da Central Globo de Produções, para ser seu assessor. Mário Lúcio Vaz trabalhou com Borjalo por cerca de dez anos. Em 1983, tornou-se diretor de produção. Em seguida, esteve à frente do projeto de criação da área de controle de qualidade, ao lado de Roberto Buzzoni. Em 1991, assumiu o cargo de direção da então Central Globo de Produção, em substituição a Daniel Filho.
Em 1990, Mário Lúcio Vaz foi responsável pela coordenação do programa Teletema, programa que tinha como característica a experimentação, mostrando, a cada semana, uma história em capítulos, exibidos de segunda a sexta-feira, antes da novela das 18h. A maior parte dos roteiristas do Teletema eram estreantes em televisão e tinham liberdade de criação, do texto à linguagem narrativa.
Em 1998, durante poucos meses, esteve à frente da Central Globo de Criação, projeto desenvolvido pela então diretora-geral da Globo, Marluce Dias, dedicado ao desenvolvimento de novos programas e talentos. Em seguida, assumiu o cargo de diretor da Central Globo de Controle de Qualidade, cujo objetivo era analisar os produtos criados e exibidos pela emissora. Na função, Mário Lúcio tinha relação próxima com os roteiristas da casa, e acreditava que o sucesso de uma novela estava no fator surpresa: “Na dramaturgia, se escreve Shakespeare até hoje. A maneira de apresentar ódio, amor e ciúme é que difere, de um autor para o outro”.
A Central contava com uma equipe de analistas com formação em diversas áreas – dramaturgia, produção musical, artes cênicas, humor, edição, direção, sociologia e pesquisa de mercado – que avaliavam os programas sob os aspectos de conteúdo, ética e comercial, entre outros. Além da direção da CGCQ, Mário Lúcio também desempenhava a função de diretor geral artístico da Globo, sendo responsável pela supervisão dos núcleos de produção de toda a teledramaturgia da Rede Globo.
Em março de 2008, Mário Lúcio deixou suas funções executivas na Globo e passou a ocupar o cargo de diretor associado Artístico, prestando consultoria para a Direção Geral à área de Entretenimento, que reúne as áreas de criação, produção, recursos artísticos e controle de qualidade, então dirigida por Manoel Martins.
Mário Lúcio Vaz morreu aos 86 anos em 21 de julho de 2019.
[Depoimento concedido ao Memória Globo por Mário Lúcio Vaz em 09/11/2000.]
Fonte:http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/mario-lucio-vaz/trajetoria.htm
Ingressou na Globo no final do ano de 1970, convidado de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Sua primeira incumbência foi assumir a função de diretor de imagem do programa de variedades Alô Brasil, Aquele Abraço. Desempenhava também o cargo de produtor da atração. Com Arlete Salles, Lúcio Mauro, Renato Corte Real e José Fernandes, Alô Brasil, Aquele Abraço era realizado ao vivo e foi apresentado até 1972.
O programa, baseado em uma competição entre os estados do Brasil, contava com diversas atrações, como números musicais e circenses. Alô Brasil, Aquele Abraço estimulava a participação dos telespectadores, feita pelo telefone ou através de cartas enviadas à Globo. O público elegia as melhores atrações do programa, que eram premiadas.
Ainda na década de 1970, Mário Lúcio passou a assessorar o diretor Augusto César Vannucci nos programas da linha de shows. Dirigiu Show da Girafa, Moacyr TV, Globo de Ouro, entre outras atrações. Nessa época, assumiu também a direção de Chico City, programa estrelado por Chico Anysio, ambientado numa cidade fictícia, onde o humorista interpretava a maioria dos personagens. Mário Lúcio permaneceu à frente do programa até 1976, quando foi substituído por Carlos Manga. “Foram mais de 40 anos acompanhando o Chico Anysio, desde antes da Globo. Uma amizade maravilhosa, uma das coisas mais bonitas que eu tive”, lembrou ele em entrevista ao Memória Globo. Assumiu, em seguida, a direção do humorístico Praça da Alegria, criação de Manoel da Nóbrega, outro marco do humor na televisão brasileira.
Na década de 1980, Mário Lúcio Vaz foi convidado por Mauro Borja Lopes, o Borjalo, então diretor da Central Globo de Produções, para ser seu assessor. Mário Lúcio Vaz trabalhou com Borjalo por cerca de dez anos. Em 1983, tornou-se diretor de produção. Em seguida, esteve à frente do projeto de criação da área de controle de qualidade, ao lado de Roberto Buzzoni. Em 1991, assumiu o cargo de direção da então Central Globo de Produção, em substituição a Daniel Filho.
Em 1990, Mário Lúcio Vaz foi responsável pela coordenação do programa Teletema, programa que tinha como característica a experimentação, mostrando, a cada semana, uma história em capítulos, exibidos de segunda a sexta-feira, antes da novela das 18h. A maior parte dos roteiristas do Teletema eram estreantes em televisão e tinham liberdade de criação, do texto à linguagem narrativa.
Em 1998, durante poucos meses, esteve à frente da Central Globo de Criação, projeto desenvolvido pela então diretora-geral da Globo, Marluce Dias, dedicado ao desenvolvimento de novos programas e talentos. Em seguida, assumiu o cargo de diretor da Central Globo de Controle de Qualidade, cujo objetivo era analisar os produtos criados e exibidos pela emissora. Na função, Mário Lúcio tinha relação próxima com os roteiristas da casa, e acreditava que o sucesso de uma novela estava no fator surpresa: “Na dramaturgia, se escreve Shakespeare até hoje. A maneira de apresentar ódio, amor e ciúme é que difere, de um autor para o outro”.
A Central contava com uma equipe de analistas com formação em diversas áreas – dramaturgia, produção musical, artes cênicas, humor, edição, direção, sociologia e pesquisa de mercado – que avaliavam os programas sob os aspectos de conteúdo, ética e comercial, entre outros. Além da direção da CGCQ, Mário Lúcio também desempenhava a função de diretor geral artístico da Globo, sendo responsável pela supervisão dos núcleos de produção de toda a teledramaturgia da Rede Globo.
Em março de 2008, Mário Lúcio deixou suas funções executivas na Globo e passou a ocupar o cargo de diretor associado Artístico, prestando consultoria para a Direção Geral à área de Entretenimento, que reúne as áreas de criação, produção, recursos artísticos e controle de qualidade, então dirigida por Manoel Martins.
Mário Lúcio Vaz morreu aos 86 anos em 21 de julho de 2019.
[Depoimento concedido ao Memória Globo por Mário Lúcio Vaz em 09/11/2000.]
Fonte:http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/mario-lucio-vaz/trajetoria.htm